Presente no Rio de Janeiro desde o dia 11 de junho, o
observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, o cônsul Dom Francis
Chullikatt, participou de todo o processo de elaboração do documento final da
Conferência Internacional Rio+20, encerrada no dia 22 de junho.
Em entrevista ao jornal “Testemunho de Fé”, Dom Francis
destacou que a posição da Igreja, presente nas Nações Unidas como Santa Sé,
estado soberano do Vaticano, não muda com a história, embora busque responder
aos desafios próprios de cada época: a Igreja defende a vida e a dignidade do
ser humano e, no atual contexto, a centralidade da pessoa humana no
desenvolvimento sustentável. Confira a entrevista:
Testemunho de Fé –
Qual a participação da Igreja no documento final?
Dom Francis Chullikatt – A Igreja Católica participa dos
assuntos internacionais como Santa Sé, expressão que se refere, em termos
teológicos, ao seu pastor universal, o Papa, e em termos jurídicos à
personalidade legal internacional da Igreja. Na Organização das Nações Unidas,
a Santa Sé tem o status de Estado Observador (embora seja Estado Membro, sem
restrições, em diversos outros organismos). Sob a orientação da Representação
Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas (e na Organização dos Estados
Americanos), eu, como núncio apostólico, juntamente com os especialistas e
consultores creditados para a Missão de Observação Permanente da Santa Sé nas
Nações Unidas, contribuímos para a minuta e a negociação do documento
resultante da Rio+20, desde o início do processo e em cada estágio, inclusive
durante as três comissões preparatórias e durante as negociações informais na
sede das Nações Unidas, em
Nova York. Isto porque, na Rio+20, a Delegação da Santa Sé
participou como estado-membro pleno da conferência. Sua comitiva foi encabeçada
pelo Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo. Também estiveram
presentes à conferência inúmeras organizações católicas não governamentais,
ativas na sociedade civil, que apoiam a Santa Sé e a auxiliam na disseminação
da Doutrina Social Católica.
TF – Que partes do documento são importantes para o futuro
da humanidade?
Dom Francis – Sendo três os pilares do desenvolvimento
sustentável – social, ambiental e econômico – todos têm importância e são,
além disso, interdependentes. Seria arriscado tender para um deles na mensagem
da Rio+20, como separar uma parte da plenitude do todo. Mesmo assim, devemos
ser cautelosos ao apresentar as realizações no Rio desta forma, que pressupõe
um pilar submetido a outro. Uma compreensão equivocada do desenvolvimento
sustentável – em especial a que subordina o esteio social e econômico ao
pilar do meio ambiente – provocou tensões consideráveis durante nossas
negociações. Dito isto, dificilmente pode-se falar de um futuro para a
humanidade sem ressaltar que o ser humano é a finalidade mais adequada para o
desenvolvimento sustentável e o objeto dos direitos humanos a ele associados,
incluindo os direitos ambientais.
TF – O senhor vê algum ponto negativo ou preocupante?
Dom Francis – É lamentável que, na busca pelo desenvolvimento
sustentável, na Declaração de Princípios da Conferência do Rio, a visão do
Primeiro Princípio, ou seja, de que o ser humano é o centro do desenvolvimento
sustentável, às vezes se tenha perdido. Quando, por meio da lógica dúbia do
controle populacional, tentaram colocar a questão dos “direitos reprodutivos”
no documento resultante da Rio+20, corremos o risco de comprometer a relação
adequada dos meios para se chegar a um fim. O crime do aborto ataca a mais
inocente das vidas humanas, e quando isto ocorre, supostamente a serviço do
desenvolvimento sustentável, o resultado é um documento decididamente falho,
e não mais atende ao Primeiro Princípio da Rio+20, que, muito justamente,
coloca a pessoa humana no centro do desenvolvimento sustentável.
TF – Por que a questão dos “direitos reprodutivos” é problemática?
Dom Francis – Porque qualquer política contra a vida vai
contra o desenvolvimento. Não é eliminando pessoas que eliminamos o subdesenvolvimento,
e sim capacitando as pessoas para criarmos desenvolvimento. O ser humano é
sempre uma finalidade em si mesmo, e o desenvolvimento sustentável é o meio
pelo qual se atinge este fim. A saúde sexual e reprodutiva, de maneira
semelhante, quando interpretada para incluir abortivos mascarados de
contraceptivos, falha da mesma forma, por atacar o direito à vida no santuário
do útero. Desta forma, não pode por mais tempo ser considerada, honestamente,
como estando a serviço da saúde, de forma alguma; muito pelo contrário, presta
um desserviço à saúde como um todo, incluindo a das mulheres.
TF – Qual ponto do documento a Igreja trabalhou ou
influenciou diretamente?
Dom Francis – A Santa Sé promoveu, de forma consistente,
uma abordagem do desenvolvimento sustentável centrado no humano, no documento
resultante da Rio+20. Este priorizou a luta contra a pobreza e a fome, ao afirmar
claramente os direitos humanos ao desenvolvimento, à alimentação, ao
atendimento básico na saúde, à educação, o acesso seguro à água potável, entre
outros. Para tanto, a Santa Sé preocupou-se com um foco mais amplo no
desenvolvimento humano integral, o que leva em consideração também as
dimensões morais e éticas do desenvolvimento sustentável. Manter a prioridade
do bem comum, e os princípios da solidariedade e da subsidiariedade no
documento, também motivou várias das emendas propostas pela Santa Sé à linguagem
do documento resultante da Rio+20. Salvaguardar o papel da família, por
exemplo, vista na Declaração Universal dos Direitos Humanos como “grupo unitário
fundamental” da sociedade, é o ponto principal para se promover um
desenvolvimento humano integral que seja sustentável, e também atento aos
valores da solidariedade e da subsidiariedade. Não há conflito entre os seres
humanos e seu desenvolvimento. É necessário dar poderes aos povos, de maneira
que possam moldar seu próprio futuro, de acordo com suas crenças religiosas,
culturas e tradições.
TF – Por que foi tão difícil aprovar o documento final? Que
divergências entre as visões dos delegados foram mais importantes?
Dom Francis – O avanço foi lento em certas seções do
documento resultante, das tensões resultantes da realidade econômica e financeira
internacional. Desigualdades entre as regiões, principalmente considerando-se
o caso da África, justificaram a pressão sobre certas delegações para que demonstrassem,
de maneira concreta, uma solidariedade e um esforço realista para a
erradicação da pobreza e da fome, como obstáculos primários ao
desenvolvimento. Os países doadores ainda são reticentes em respeitar os
compromissos assumidos para fornecer ajuda ao desenvolvimento das nações pobres
e menos desenvolvidas. Precisam adotar medidas para a transferência de
tecnologia adequada em âmbito local, para a promoção de um mercado global mais
equitativo e inclusivo, para o respeito aos compromissos assumidos de fornecer
ajuda ao desenvolvimento, e para encontrar novos meios de se colocar a
dignidade humana, o bem comum e a proteção à criação no centro da vida econômica.
Deveriam evitar a adoção de medidas protecionistas rígidas demais e que
incentivem um clima de desconfiança entre parceiros, pois isto fere o princípio
da solidariedade. O princípio da destinação universal de bens exige que o protecionismo
excessivo seja suplantado, mesmo na esfera ambiental.
TF – Os países mais pobres, na sua opinião, são contemplados
em conferências como esta?
Dom Francis – Os países pobres e em desenvolvimento chegam
com grandes expectativas a conferências internacionais como a Rio+20. Procuram
ajuda, assistência e especialização, no âmbito social, financeiro e humanitário,
da parte de seus irmãos das nações desenvolvidas. No entanto, parece que tudo
o que conseguem obter dessas conferências muito divulgadas é, geralmente,
apenas promessas e compromissos. É suficiente lembrar aqui como os governos
ainda demoram para respeitar os compromissos assumidos em 2000, quando
adotaram os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”. Após aquela
conferência, os estados-nações parecerem ter-se esquecido de que concordaram
com aqueles objetivos para se criar um mundo melhor. Os governos precisam
cumprir suas promessas; de outra forma, um futuro próspero e melhor continuará
sendo uma miragem para os povos mais necessitados e pobres em todo o mundo.
ANDRÉIA GRIPP
TRADUÇÃO: CRISTINA VAZ DE CARVALHO
FOTO: GUSTAVO DE OLIVEIRA