A Santa Sé, em parceria com outras organizações católicas,
promoveu no dia 19 de junho um evento paralelo à Rio+20 cujo tema foi
“Agricultura e sociedades sustentáveis: Segurança alimentar, Terra e
Solidariedade”.
O evento teve como objetivo promover soluções concretas,
práticas e éticas para o desenvolvimento humano integral, como previsto pelo
Papa Bento XVI na Encíclica “Caritas in Veritate”. Outra proposta foi
socializar experiências realizadas por organizações como a Cáritas que,
inspiradas pela fé, realizam um amplo trabalho junto às populações e
comunidades mais afetadas pela miséria e falta de acesso a alimentos.
Confira na íntegra o discurso proferido pelo legado
pontifício na Rio+20, Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer.
Excelentíssimos Senhoras e Senhores,
É uma honra e um grande prazer estar aqui hoje como Enviado
Especial de Sua Santidade o Papa Bento XVI à Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável. De início, gostaria de agradecer a Sua
Excelência o Arcebispo Francis Chullikatt pela contínua dedicação, tanto nas
Nações Unidas como nesta Conferência.
Além disso, gostaria de agradecer a Sua Excelência o
Arcebispo Paul Ouedraogo, às senhoras Gisele Henriques, Cristina dos Anjos, e
Maria Elena Aradas por estarem hoje conosco. O trabalho de base da Cáritas
Internacional, CIDSE e dos Franciscanos Internacional representa uma grande
contribuição para a promoção do desenvolvimento sustentável tendo o humano como
centro.
Há 20 anos, os líderes do mundo vieram ao Rio de Janeiro
para estabelecer um novo modelo e um novo escopo para aprimorar o
desenvolvimento sustentável. Naquele encontro, reconheceram que, ao se promover
uma parceria nova e mais igualitária para o desenvolvimento sustentável, o
princípio primário que deve guiar o desenvolvimento global exige que se
coloque a pessoa humana no centro das preocupações com o desenvolvimento
sustentável. A centralidade da pessoa humana, no Princípio 1 do documento
resultante da Rio 92, é um lembrete de que não se atinge o desenvolvimento
sustentável por meio apenas do desenvolvimento econômico, ambiental ou
político, mas sim, e mais do que tudo, deve ser medido por sua capacidade para
apoiar e salvaguardar a dignidade da pessoa humana.
Agora, 20 anos depois, continuamos a ver as consequências
para o desenvolvimento humano quando a pessoa não é colocada no centro do
desenvolvimento político, ambiental ou social, mas, ao contrário, é colocado à
sua mercê. A promoção contínua da abordagem neo-maltusiana do desenvolvimento,
que vê os seres humanos como um obstáculo ao desenvolvimento, em vez de um
benefício ao mesmo, levou à adoção de programas que promovem a destruição da
vida humana e tem fomentado uma cultura hostil à vida. Os efeitos de uma
abordagem não centrada no ser humano podem ser comprovados no envelhecimento
da população, em diversas sociedades em todo o mundo atual, assim como nos
milhões de crianças que nunca tiveram a oportunidade de nascer, e cujas
contribuições graduais para o nosso planeta serão para sempre ignoradas.
A centralidade da pessoa humana exige que a sociedade meça o
progresso econômico, acima de tudo, por sua capacidade de promover a pessoa
humana. Isto exige que a ética não seja divorciada da tomadas de decisões
econômicas, mas sim que a mesma seja reconhecida. A ética da justiça e da
solidariedade atua como base de uma eficiência social e econômica fundamental
para reparar injustiças estruturais e reformular instituições que perpetuem a
pobreza, o subdesenvolvimento e a degradação ambiental, permitindo a cada um o
direito de participar da vida econômica, para o progresso em suas comunidades
e sociedades. Quando a dimensão ética é negligenciada na elaboração de
políticas econômicas, podemos facilmente ver os efeitos desumanizantes e
desestabilizantes que resultam do crescimento econômico realizado à custa dos
seres humanos, e em detrimento deles.
A contínua crise financeira e econômica é testemunha dos
perigos do desenvolvimento econômico que ignora imperativos éticos e morais, e
demonstra que o interesse pessoal e a ganância apenas estimulam a já grave
desigualdade e divisão social. A consequência de uma ordem econômica,
ambivalente quanto aos imperativos morais e éticos, pode ser vista nos rostos
dos desempregados, mulheres e homens que lutam para sustentar suas famílias;
na crescente turbulência política que assola o mundo, enquanto os líderes
políticos tentam estabilizar o sistema econômico; e é brutalmente comprovada
na vida dos mais pobres da sociedade, cujos filhos morrem de fome ou sucumbem a
doenças que, de outra forma, seriam tratadas com facilidade. Estas realidades
emergem sempre que as políticas econômicas não reconhecem a ligação essencial
entre a moralidade e a vida econômica.
A centralidade da pessoa humana, no desenvolvimento
sustentável, deveria orientar não apenas o trabalho dos que elaboram as
políticas, como também o do setor privado. Ainda que o aumento da riqueza seja
um objetivo da economia, a geração de riqueza deve ter seu foco no progresso
com qualidade e moralidade, e não apenas na quantidade de riqueza gerada. Onde
a acumulação de riqueza for considerada um bem em si, ciclos insustentáveis de
produção e consumo continuarão a provocar o esgotamento inexorável dos
recursos, deixando nas pessoas e comunidades o anseio pela felicidade
autêntica. É preciso, em vez disso, haver meios para a promoção do
desenvolvimento humano integral, o que reconhece que o desenvolvimento humano
concreto exige mais que o simples desenvolvimento social ou político, mas
requer, principalmente, que o desenvolvimento da pessoa humana seja mantido à
frente e no centro de tudo.
A encíclica do Papa Bento XVI, “Caritas in veritate”,
elabora a necessidade de se promover o desenvolvimento integral, a fim de
estimular o desenvolvimento verdadeiramente humano e, portanto, sustentável.
Este desenvolvimento integral exige a identificação de que as abordagens
apenas institucionais, para promover o desenvolvimento, não bastam para o
desenvolvimento genuíno, mas que cada membro individual da sociedade adote uma
atitude vocacional presumindo a responsabilidade com liberdade, em
solidariedade genuína uns com os outros e com toda a criação.
Reconhecer uma dimensão ética do desenvolvimento não se
limita somente a criar riqueza, mas tem também como relevante o nosso papel de
administradores da criação. Não somos chamados a subjugar e dominar a criação
(Gen 1:28) sem referência a determinados critérios. Em vez disso, devemos
exercer tal mandato administrando de modo responsável a criação, para vermos
florescer as gerações atuais e futuras. Isto exige o reconhecimento de uma
responsabilidade primordial para com o meio ambiente, para o aperfeiçoamento do
nosso futuro e o de todo o planeta.
Administrar de forma adequada a criação é reconhecer a contribuição
importante dada pela ciência e a tecnologia à proteção ambiental, e fornecer
os recursos necessários para a sobrevivência humana. No entanto, os avanços
científicos e tecnológicos devem ser sempre cautelosos e confiáveis, de modo
que seus objetivos sirvam de fato a toda a humanidade. Avanços científicos e
tecnológicos não podem, portanto, se tornar novos meios para criar barreiras
aos mais pobres, nem se pode permitir que provoquem novos e duradouros prejuízos
ao delicado equilíbrio de nossos diversos ecossistemas.
O direito à alimentação e à água potável continuam sendo
dois dos mais básicos direitos humanos, e permanecem não atendidos em muitas
partes do mundo. Avanços científicos e tecnológicos, por certo, tornaram
possível, para toda a comunidade internacional, usufruir o benefício da
generosidade da criação para o bem de toda a humanidade. Mesmo assim, milhões
de pessoas vivem ainda sem esses direitos mais básicos. Esta é uma violação
injusta dos princípios da lei natural. Uma ordem internacional mais efetiva
exige mais profunda solidariedade e maior responsabilidade para com nossos
irmãos e irmãs, principalmente os mais necessitados. Crianças que passam fome
e morrem de disenteria são nossas crianças: não se trata de um problema local,
mas um problema que clama à comunidade internacional como um todo, para que se
uma, na tarefa de cumprir os direitos humanos mais básicos.
O progresso tecnológico, científico e humano adquire
importância vital, se formos abordar a segurança alimentar e a promoção do
manejo da agricultura e da terra. Como o Papa Bento XVI assinalou repetidas
vezes, “a fome não depende tanto da falta de coisas materiais, mas sim da
escassez de recursos sociais”. No intuito de debelar esta escassez de recursos
sociais, é imperativo que os líderes da sociedade deem os passos necessários
para lidar com as causas estruturais da insegurança alimentar e aumentem os
investimentos no desenvolvimento agrícola dos países pobres. Por meio do
acesso mais amplo e bem distribuído aos mercados e à tecnologia agrícola – como
irrigação, instalações eficientes de armazenagem e transporte, e programas para
remover as distorções de mercado – podemos dar uma contribuição substancial à
segurança alimentar e à erradicação da pobreza.
No desenvolvimento de tais políticas, precisamos ter certeza
de que a cooperação, consistente com o princípio da subsidiariedade, oriente
nossos esforços para que as escolhas e necessidades das comunidades locais
sejam tratadas de maneira adequada e levadas em consideração. Assim
sendo, programas agrícolas, de assistência ao desenvolvimento e de reforma
agrária não devem ser implementados de cima para baixo, mas, ao contrário,
levar em consideração as comunidades locais e com elas cooperar.
Um dos primeiros passos ao se lidar com a reforma agrária é
combater a falta de direitos à terra e à propriedade dos marginalizados dentro
da sociedade. A concentração crescente da propriedade da terra e da produção
agrícola por uns poucos, apresenta, aos líderes políticos e sociais, a
obrigação moral de encontrar políticas para se chegar a meios equitativos e
justos para uma reforma agrária de longo prazo. Em especial, maiores
investimentos em fazendas familiares e de pequenos proprietários oferecem uma
oportunidade ímpar, tanto para o sustento da família, quanto para estimular um
futuro agrícola mais sustentável no longo prazo.
A destinação universal dos bens da terra aplica-se também à
água, este elemento vital e essencial para nossa sobrevivência e para a
agricultura. A Sagrada Escritura considera ainda a água um símbolo de vida e
purificação. Por sua própria natureza, a água nunca pode ser tratada como mais
uma mercadoria, mas sim, deve ser reconhecida como um direito inalienável, a
ser partilhado em solidariedade com outros. Água é um bem público, e isto
significa que é responsabilidade dos líderes políticos garantirem que todas as
pessoas, principalmente os pobres, tenham acesso à água potável. O não
cumprimento de tais obrigações resulta em sofrimento, conflitos e enfermidades,
o que enfraquece o direito inerente à vida.
Em todo o mundo, sérios problemas humanos e ecológicos
clamam por uma mudança fundamental de estilo de vida, se quisermos ser melhores
como administradores da criação e promotores de uma comunidade econômica
internacional mais justa. Os métodos de produção de alimentos exigem, portanto,
uma análise atenta, para garantir o direito ao alimento e à água, que sejam
suficientes, saudáveis e nutritivos; e para alcançar este direito de forma a
reconhecer nossa obrigação de proteger o meio ambiente como uma herança
compartilhada para as gerações atual e futuras. Isto requer a quebra do longo
ciclo de consumo e produção excessivos, de pobreza, e de degradação ambiental.
Precisamos reconhecer que todas as decisões econômicas têm implicações morais,
e isto exige de nós a redescoberta dos valores tradicionais da sobriedade,
temperança e autodisciplina. É escandaloso um mundo no qual a riqueza consome
uma proporção esmagadora dos recursos humanos e naturais, e isto exige renovada
boa vontade para se ter plena consciência da interdependência entre todos os
habitantes da terra. A solidariedade global autêntica deve motivar os
indivíduos e seus líderes políticos a reavaliarem suas opções de estilo de
vida, a fim de fazerem escolhas que aprimorem a dignidade humana e a
solidariedade global. A respeito disto, precisamos reconhecer o papel
fundamental que a família desempenha em aprender e ensinar os valores necessários
para formar cidadãos responsáveis, que fazem escolhas responsáveis quanto ao
seu estilo de vida.
Além disso, muito trabalho permanece ainda a ser feito, para
se encontrar um processo prospectivo, após esta conferência, e garantir que os
países em desenvolvimento tenham acesso à tão necessária tecnologia
ecologicamente correta, e aos recursos financeiros, para a transição rumo a um
futuro mais sustentável. Da mesma forma, é necessário haver mais solidariedade
para ampliar o acesso ao trabalho decente e aos cuidados básicos de saúde,
assim como aos direitos dos imigrantes. Nossa esperança é que o texto final do
documento resultante trate de maneira satisfatória esses aspectos, de modo a
ser considerado como uma contribuição ao bem estar material e espiritual de
todas as pessoas, suas famílias e suas comunidades.
Obrigado.
TRADUÇÃO: CRISTINA VAZ DE CARVALHO (NÃO OFICIAL)
FOTO: CÁRITAS BRASILEIRA