segunda-feira, 23 de julho de 2012

Homenagem ao cardeal



Conheci Dom Eugenio Sales muitos anos atrás, quando eu ainda trabalhava no Jornal do Brasil. Entre outras coisas, ele foi um grande comunicador, como ficou demonstrado em sua incessante produção de artigos e programas de televisão. Mas toda essa atividade nunca teve um sentido personalista: acho que o dado marcante da sua perso­nalidade era ser um homem de Igreja, imbuído dessa mística que é o substrato da nossa fé.
Lembrarei sempre os encon­tros do Sumaré, em que o cardeal reunia figuras expressivas da sociedade carioca - sobretudo os que ele considerava “formadores de opinião”. Dom Eugenio abria os debates, depois sentava-se numa cadeira lateral, e a tudo assistia em silêncio, até que chegava a hora da oração final. Assim, ele ia tomando o pulso de uma comunidade de que ele era o indiscutível pastor.
Impossível não lembrar, falando de Dom Eugenio, que ele dispôs de colaboradores preciosos. Havia Dom Romer, em quem ele se apoiava muito para questões teológicas. Havia Tarcisio Padilha, filósofo, pre­sidente do Centro Dom Vital. E havia o inesquecível padre Ávila, que brilhava nos encontros do Sumaré. Fernando Bastos de Ávila, que depois eu voltaria a encontrar na Academia Brasilei­ra de Letras, era um intelectual completo, e um orador empol­gante. Obrigatória também é a menção a Maria Christina Sá, com a sua vocação maravilhosa para a Pastoral do Menor, e cujos talentos de organização foram decisivos para o sucesso das visitas papais.
Dom Eugenio era o maestro dessa orquestra, com a força de sua personalidade. Era um líder nato, e isso transpirava de tal maneira, que não posso imaginá-lo gritando: mandava sem esforço, e sorrindo.
Com ele a Igreja atravessou, aqui no Rio de Janeiro, perío­dos de extrema dificuldade. As convulsões políticas cobraram de Dom Eugenio todos os re­cursos de alguém que entendia de política como poucos (posso facilmente imaginá-lo gover­nando um estado brasileiro, se não fosse a vocação eclesiástica). Dono de um senso exacerbado de responsabilidade, avalio sua angústia em períodos como o do AI-5, em que vivíamos num limbo legal e institucional.
Diferentemente do que fi­zeram personalidades notáveis como os cardeais Arns e Lors­cheider, Dom Eugenio não bateu de frente com o regime militar. Preservou, com isso, um canal de diálogo que seria precioso em situações extremas - como as de pessoas que desapareciam nos corredores dos quartéis. Hoje se sabe o alcance de sua atuação na ajuda a perseguidos políticos, brasileiros, chilenos, argentinos e uruguaios. Ele não hesitava nesse terreno: achava que era a sua missão de pastor - como também a de visitar os prisioneiros comuns em suas celas. Fico pensando, fascinado, que tipo de diálogo ele manteria com essas pessoas.
Sendo um homem austero e abnegado, ele não dava a impressão de estar em busca de compensações pessoais. Mas acho que a recompensa por tantos trabalhos chegou com a amizade que se desenvolveu entre ele e o “papa polonês”, Karol Wojtyla. Era uma afi­nidade que começava com a semelhança de idade, e prosse­guia num exacerbado senso de missão. Dessa parceria única surgiu a possibilidade das visi­tas papais ao Brasil, momentos históricos, comoventes. O triunfo do papa, nessas visitas, era também o triunfo de Dom Eugenio, que soube criar todas as condições para esses encon­tros em que vinha à tona a alma católica do Brasil.

LUIZ PAULO HORTA
JORNALISTA, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
CHARGE: AROEIRA / O DIA. CHARGE PUBLICADA NO JORNAL O DIA EM 11 DE JULHO E GENTILMENTE CEDIDA AO TESTEMUNHO DE FÉ