sexta-feira, 29 de junho de 2012

Por um desenvolvimento que respeite a vida



A Santa Sé, em parceria com outras organizações católicas, promoveu no dia 19 de junho um evento paralelo à Rio+20 cujo tema foi “Agricultura e sociedades sustentáveis: Segurança alimentar, Terra e Solidariedade”.
O evento teve como objetivo promover soluções concretas, práticas e éticas para o desenvolvimento humano integral, como previsto pelo Papa Bento XVI na Encíclica “Caritas in Veritate”. Outra proposta foi socializar experiências realizadas por organizações como a Cáritas que, inspiradas pela fé, realizam um amplo trabalho junto às populações e comunidades mais afetadas pela miséria e falta de acesso a alimentos.
Confira na íntegra o discurso proferido pelo legado pontifício na Rio+20, Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer.

Excelentíssimos Senhoras e Senhores,
É uma honra e um grande prazer estar aqui hoje como En­viado Especial de Sua Santidade o Papa Bento XVI à Conferência das Nações Unidas sobre Desen­volvimento Sustentável. De iní­cio, gostaria de agradecer a Sua Excelência o Arcebispo Francis Chullikatt pela contínua dedi­cação, tanto nas Nações Unidas como nesta Conferência.
Além disso, gostaria de agra­decer a Sua Excelência o Arcebis­po Paul Ouedraogo, às senhoras Gisele Henriques, Cristina dos Anjos, e Maria Elena Aradas por estarem hoje conosco. O tra­balho de base da Cáritas Inter­nacional, CIDSE e dos Francis­canos Internacional representa uma grande contribuição para a promoção do desenvolvimento sustentável tendo o humano como centro.
Há 20 anos, os líderes do mundo vieram ao Rio de Janei­ro para estabelecer um novo modelo e um novo escopo para aprimorar o desenvolvimento sustentável. Naquele encontro, reconheceram que, ao se pro­mover uma parceria nova e mais igualitária para o desenvolvi­mento sustentável, o princípio primário que deve guiar o de­senvolvimento global exige que se coloque a pessoa humana no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. A centralidade da pessoa humana, no Princípio 1 do documen­to resultante da Rio 92, é um lembrete de que não se atinge o desenvolvimento sustentável por meio apenas do desenvolvi­mento econômico, ambiental ou político, mas sim, e mais do que tudo, deve ser medido por sua capacidade para apoiar e salva­guardar a dignidade da pessoa humana.
Agora, 20 anos depois, conti­nuamos a ver as consequências para o desenvolvimento humano quando a pessoa não é colocada no centro do desenvolvimento político, ambiental ou social, mas, ao contrário, é colocado à sua mercê. A promoção contínua da abordagem neo-maltusiana do desenvolvimento, que vê os seres humanos como um obs­táculo ao desenvolvimento, em vez de um benefício ao mesmo, levou à adoção de programas que promovem a destruição da vida humana e tem fomentado uma cultura hostil à vida. Os efeitos de uma abordagem não centrada no ser humano podem ser comprovados no envelheci­mento da população, em diversas sociedades em todo o mundo atual, assim como nos milhões de crianças que nunca tiveram a oportunidade de nascer, e cujas contribuições graduais para o nosso planeta serão para sempre ignoradas.
A centralidade da pessoa humana exige que a sociedade meça o progresso econômico, acima de tudo, por sua capa­cidade de promover a pessoa humana. Isto exige que a ética não seja divorciada da tomadas de decisões econômicas, mas sim que a mesma seja reconhecida. A ética da justiça e da solida­riedade atua como base de uma eficiência social e econômica fundamental para reparar in­justiças estruturais e reformular instituições que perpetuem a pobreza, o subdesenvolvimento e a degradação ambiental, per­mitindo a cada um o direito de participar da vida econômica, para o progresso em suas comu­nidades e sociedades. Quando a dimensão ética é negligenciada na elaboração de políticas eco­nômicas, podemos facilmente ver os efeitos desumanizantes e desestabilizantes que resultam do crescimento econômico reali­zado à custa dos seres humanos, e em detrimento deles.
A contínua crise financeira e econômica é testemunha dos perigos do desenvolvimento econômico que ignora impera­tivos éticos e morais, e demons­tra que o interesse pessoal e a ganância apenas estimulam a já grave desigualdade e divisão social. A consequência de uma ordem econômica, ambivalente quanto aos imperativos morais e éticos, pode ser vista nos rostos dos desempregados, mulheres e homens que lutam para susten­tar suas famílias; na crescente turbulência política que assola o mundo, enquanto os líderes políticos tentam estabilizar o sistema econômico; e é bru­talmente comprovada na vida dos mais pobres da sociedade, cujos filhos morrem de fome ou sucumbem a doenças que, de outra forma, seriam tratadas com facilidade. Estas realidades emergem sempre que as políticas econômicas não reconhecem a ligação essencial entre a morali­dade e a vida econômica.
A centralidade da pessoa humana, no desenvolvimento sustentável, deveria orientar não apenas o trabalho dos que elabo­ram as políticas, como também o do setor privado. Ainda que o aumento da riqueza seja um objetivo da economia, a geração de riqueza deve ter seu foco no progresso com qualidade e moralidade, e não apenas na quantidade de riqueza gerada. Onde a acumulação de riqueza for considerada um bem em si, ciclos insustentáveis de produção e consumo continuarão a provo­car o esgotamento inexorável dos recursos, deixando nas pessoas e comunidades o anseio pela felici­dade autêntica. É preciso, em vez disso, haver meios para a promo­ção do desenvolvimento humano integral, o que reconhece que o desenvolvimento humano con­creto exige mais que o simples desenvolvimento social ou polí­tico, mas requer, principalmente, que o desenvolvimento da pessoa humana seja mantido à frente e no centro de tudo.
A encíclica do Papa Bento XVI, “Caritas in veritate”, elabora a necessidade de se promover o desenvolvimento integral, a fim de estimular o desenvolvimen­to verdadeiramente humano e, portanto, sustentável. Este desenvolvimento integral exige a identificação de que as aborda­gens apenas institucionais, para promover o desenvolvimento, não bastam para o desenvolvi­mento genuíno, mas que cada membro individual da sociedade adote uma atitude vocacional presumindo a responsabilidade com liberdade, em solidariedade genuína uns com os outros e com toda a criação.
Reconhecer uma dimensão ética do desenvolvimento não se limita somente a criar ri­queza, mas tem também como relevante o nosso papel de ad­ministradores da criação. Não somos chamados a subjugar e dominar a criação (Gen 1:28) sem referência a determinados critérios. Em vez disso, devemos exercer tal mandato adminis­trando de modo responsável a criação, para vermos florescer as gerações atuais e futuras. Isto exige o reconhecimento de uma responsabilidade primordial para com o meio ambiente, para o aperfeiçoamento do nosso fu­turo e o de todo o planeta.
Administrar de forma ade­quada a criação é reconhecer a contribuição importante dada pela ciência e a tecnologia à pro­teção ambiental, e fornecer os recursos necessários para a sobre­vivência humana. No entanto, os avanços científicos e tecnológicos devem ser sempre cautelosos e confiáveis, de modo que seus objetivos sirvam de fato a toda a humanidade. Avanços cientí­ficos e tecnológicos não podem, portanto, se tornar novos meios para criar barreiras aos mais po­bres, nem se pode permitir que provoquem novos e duradouros prejuízos ao delicado equilíbrio de nossos diversos ecossistemas.
O direito à alimentação e à água potável continuam sendo dois dos mais básicos direitos humanos, e permanecem não atendidos em muitas partes do mundo. Avanços científicos e tecnológicos, por certo, tornaram possível, para toda a comunidade internacional, usufruir o benefí­cio da generosidade da criação para o bem de toda a humani­dade. Mesmo assim, milhões de pessoas vivem ainda sem esses direitos mais básicos. Esta é uma violação injusta dos princípios da lei natural. Uma ordem inter­nacional mais efetiva exige mais profunda solidariedade e maior responsabilidade para com nos­sos irmãos e irmãs, principalmen­te os mais necessitados. Crianças que passam fome e morrem de disenteria são nossas crianças: não se trata de um problema local, mas um problema que cla­ma à comunidade internacional como um todo, para que se uma, na tarefa de cumprir os direitos humanos mais básicos.
O progresso tecnológico, científico e humano adquire importância vital, se formos abordar a segurança alimentar e a promoção do manejo da agri­cultura e da terra. Como o Papa Bento XVI assinalou repetidas vezes, “a fome não depende tan­to da falta de coisas materiais, mas sim da escassez de recursos sociais”. No intuito de debelar esta escassez de recursos sociais, é imperativo que os líderes da sociedade deem os passos neces­sários para lidar com as causas estruturais da insegurança ali­mentar e aumentem os inves­timentos no desenvolvimento agrícola dos países pobres. Por meio do acesso mais amplo e bem distribuído aos mercados e à tecnologia agrícola – como irrigação, instalações eficientes de armazenagem e transporte, e programas para remover as dis­torções de mercado – podemos dar uma contribuição substan­cial à segurança alimentar e à erradicação da pobreza.
No desenvolvimento de tais políticas, precisamos ter certeza de que a cooperação, consistente com o princípio da subsidiarieda­de, oriente nossos esforços para que as escolhas e necessidades das comunidades locais sejam tratadas de maneira adequada e levadas em consideração. Assim sendo, programas agrícolas, de assistência ao desenvolvimento e de reforma agrária não devem ser implementados de cima para baixo, mas, ao contrário, levar em consideração as comunida­des locais e com elas cooperar.
Um dos primeiros passos ao se lidar com a reforma agrária é combater a falta de direitos à terra e à propriedade dos mar­ginalizados dentro da sociedade. A concentração crescente da propriedade da terra e da pro­dução agrícola por uns poucos, apresenta, aos líderes políticos e sociais, a obrigação moral de encontrar políticas para se che­gar a meios equitativos e justos para uma reforma agrária de longo prazo. Em especial, maio­res investimentos em fazendas familiares e de pequenos pro­prietários oferecem uma opor­tunidade ímpar, tanto para o sustento da família, quanto para estimular um futuro agrícola mais sustentável no longo prazo.
A destinação universal dos bens da terra aplica-se também à água, este elemento vital e es­sencial para nossa sobrevivência e para a agricultura. A Sagrada Escritura considera ainda a água um símbolo de vida e purifica­ção. Por sua própria natureza, a água nunca pode ser tratada como mais uma mercadoria, mas sim, deve ser reconhecida como um direito inalienável, a ser partilhado em solidariedade com outros. Água é um bem público, e isto significa que é responsabilidade dos líderes políticos garantirem que todas as pessoas, principalmente os pobres, tenham acesso à água potável. O não cumprimento de tais obrigações resulta em sofrimento, conflitos e enfermi­dades, o que enfraquece o direito inerente à vida.
Em todo o mundo, sérios problemas humanos e ecológi­cos clamam por uma mudança fundamental de estilo de vida, se quisermos ser melhores como administradores da criação e promotores de uma comunidade econômica internacional mais justa. Os métodos de produção de alimentos exigem, portanto, uma análise atenta, para garantir o direito ao alimento e à água, que sejam suficientes, saudáveis e nutritivos; e para alcançar este direito de forma a reconhecer nossa obrigação de proteger o meio ambiente como uma herança compartilhada para as gerações atual e futuras. Isto requer a quebra do longo ciclo de consumo e produção excessivos, de pobreza, e de degradação am­biental. Precisamos reconhecer que todas as decisões econômi­cas têm implicações morais, e isto exige de nós a redescoberta dos valores tradicionais da so­briedade, temperança e autodis­ciplina. É escandaloso um mun­do no qual a riqueza consome uma proporção esmagadora dos recursos humanos e naturais, e isto exige renovada boa vontade para se ter plena consciência da interdependência entre todos os habitantes da terra. A soli­dariedade global autêntica deve motivar os indivíduos e seus líde­res políticos a reavaliarem suas opções de estilo de vida, a fim de fazerem escolhas que apri­morem a dignidade humana e a solidariedade global. A respeito disto, precisamos reconhecer o papel fundamental que a família desempenha em aprender e en­sinar os valores necessários para formar cidadãos responsáveis, que fazem escolhas responsáveis quanto ao seu estilo de vida.
Além disso, muito trabalho permanece ainda a ser feito, para se encontrar um processo prospectivo, após esta confe­rência, e garantir que os países em desenvolvimento tenham acesso à tão necessária tecno­logia ecologicamente correta, e aos recursos financeiros, para a transição rumo a um futuro mais sustentável. Da mesma forma, é necessário haver mais solidarie­dade para ampliar o acesso ao trabalho decente e aos cuidados básicos de saúde, assim como aos direitos dos imigrantes. Nossa esperança é que o texto final do documento resultante trate de maneira satisfatória esses aspec­tos, de modo a ser considerado como uma contribuição ao bem estar material e espiritual de todas as pessoas, suas famílias e suas comunidades.
Obrigado.

TRADUÇÃO: CRISTINA VAZ DE CARVALHO (NÃO OFICIAL)
FOTO: CÁRITAS BRASILEIRA