Conheci Dom Eugenio Sales muitos anos atrás, quando eu ainda
trabalhava no Jornal do Brasil. Entre outras coisas, ele foi um grande
comunicador, como ficou demonstrado em sua incessante produção de artigos e
programas de televisão. Mas toda essa atividade nunca teve um sentido
personalista: acho que o dado marcante da sua personalidade era ser um homem
de Igreja, imbuído dessa mística que é o substrato da nossa fé.
Lembrarei sempre os encontros do Sumaré, em que o cardeal
reunia figuras expressivas da sociedade carioca - sobretudo os que ele
considerava “formadores de opinião”. Dom Eugenio abria os debates, depois
sentava-se numa cadeira lateral, e a tudo assistia em silêncio, até que chegava
a hora da oração final. Assim, ele ia tomando o pulso de uma comunidade de que
ele era o indiscutível pastor.
Impossível não lembrar, falando de Dom Eugenio, que ele
dispôs de colaboradores preciosos. Havia Dom Romer, em quem ele se apoiava
muito para questões teológicas. Havia Tarcisio Padilha, filósofo, presidente
do Centro Dom Vital. E havia o inesquecível padre Ávila, que brilhava nos
encontros do Sumaré. Fernando Bastos de Ávila, que depois eu voltaria a
encontrar na Academia Brasileira de Letras, era um intelectual completo, e um
orador empolgante. Obrigatória também é a menção a Maria Christina Sá, com a
sua vocação maravilhosa para a Pastoral do Menor, e cujos talentos de
organização foram decisivos para o sucesso das visitas papais.
Dom Eugenio era o maestro dessa orquestra, com a força de sua
personalidade. Era um líder nato, e isso transpirava de tal maneira, que não
posso imaginá-lo gritando: mandava sem esforço, e sorrindo.
Com ele a Igreja atravessou, aqui no
Rio de Janeiro, períodos de extrema dificuldade. As convulsões políticas cobraram
de Dom Eugenio todos os recursos de alguém que entendia de política como
poucos (posso facilmente imaginá-lo governando um estado brasileiro, se não
fosse a vocação eclesiástica). Dono de um senso exacerbado de responsabilidade,
avalio sua angústia em períodos como o do AI-5, em que vivíamos num limbo legal
e institucional.
Diferentemente do que fizeram personalidades notáveis como
os cardeais Arns e Lorscheider, Dom Eugenio não bateu de frente com o regime
militar. Preservou, com isso, um canal de diálogo que seria precioso em
situações extremas - como as de pessoas que desapareciam nos corredores dos
quartéis. Hoje se sabe o alcance de sua atuação na ajuda a perseguidos
políticos, brasileiros, chilenos, argentinos e uruguaios. Ele não hesitava nesse
terreno: achava que era a sua missão de pastor - como também a de visitar os
prisioneiros comuns em suas celas. Fico pensando, fascinado, que tipo de
diálogo ele manteria com essas pessoas.
Sendo um homem austero e abnegado, ele não dava a impressão
de estar em busca de compensações pessoais. Mas acho que a recompensa por
tantos trabalhos chegou com a amizade que se desenvolveu entre ele e o “papa
polonês”, Karol Wojtyla. Era uma afinidade que começava com a semelhança de
idade, e prosseguia num exacerbado senso de missão. Dessa parceria única
surgiu a possibilidade das visitas papais ao Brasil, momentos históricos,
comoventes. O triunfo do papa, nessas visitas, era também o triunfo de Dom
Eugenio, que soube criar todas as condições para esses encontros em que vinha
à tona a alma católica do Brasil.
LUIZ PAULO HORTA
JORNALISTA, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
CHARGE: AROEIRA / O DIA. CHARGE PUBLICADA NO JORNAL O DIA EM 11 DE JULHO E GENTILMENTE CEDIDA AO TESTEMUNHO DE FÉ