Repetimos em geral afirmações sobre a importância de se
manter a amizade. Dizemos e musicamos: “Um amigo bom e fiel vale mais que um
tesouro”. A frase se origina do ensinamento sapiencial sobre o cultivo e a
fidelidade nos relacionamentos amigáveis, transmitidos através do gênero
literário dos provérbios da cultura hebraica. Dizem os textos da Sagrada
Escritura: “Não abandones teu amigo, nem o amigo do teu pai” (Pr 27, 10); “Não
te esqueças do amigo em teu coração, não percas a sua lembrança em meio às riquezas”
(Eclo 37, 6); “Um amigo fiel é um poderoso refúgio, quem o descobriu, encontrou
um tesouro. Um amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Um amigo
fiel é um bálsamo vital e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele que teme
ao Senhor faz amigos verdadeiros, pois tal como ele é, assim é seu amigo” (Eclo
6, 14-17).
Tais referências bíblicas alimentaram em Dom Euge nio a fidelidade
aos amigos, que foram muitos em sua vida de homem público. Companheiros e
companheiras de amizade particular, e não só colaboradores de trabalho, nem
sempre compartilhavam da mesma convicção religiosa ou não pensavam e agiam do
mesmo modo de ser, entre si, mesmo quando professavam a fé comum. É característico
do relacionamento cultivado pelo cardeal: respeito ao pluralismo de ideias;
acolhida da diversidade; liberdade de divergir educadamente.
Sabe-se que o cardeal cultivava a obediência incondicional
e a devoção sincera ao Papa, enquanto sucessor do apóstolo Pedro e vigário de
Cristo na terra.
Portanto, por razões de fé católica. Como bispo, foi
obediente aos papas: Pio XII, que o escolheu para o episcopado; João XXIII, que
o convocou ao Concílio Ecumênico Vaticano II; Paulo VI, que o nomeou cardeal
presbítero da Igreja Romana do título de São Gregório VII e o transferiu de São
Salvador da Bahia para São Sebastião do Rio de Janeiro; João Paulo I e João
Paulo II, eleitos nos conclaves de que participara; Bento XVI, já na fase
recolhida de arcebispo emérito.
Além de colaborador dos papas citados, Dom Eugenio se
distinguiu pela amizade compartilhada com o Servo de Deus, João Paulo II.
Comungava com a mesma fé do amigo e com suas intenções mais profundas.
Partilhavam confidências.
Conheceram-se no período conciliar e conviveram em dois
conclaves, o segundo quando o Cardeal Wojtyla de Cracóvia fora eleito Papa.
Então, para conhecê-lo melhor, planejou a visita à Polônia, aos lugares ligados
a sua biografia. A delicadeza do gesto aproximou os dois grandes líderes da
Igreja. Reforçou a confiança recíproca.
O cardeal realizou congressos sobre a antropologia e a
práxis no pensamento de João Paulo II. Deu o nome de Edifício João Paulo II à
construção do prédio que reúne a Mitra e a Cúria, o Tribunal Eclesiástico e
todas as atividades pastorais da arquidiocese, para facilitar a aproximação dos
organismos. Criou a Faculdade Eclesiástica João Paulo II. Iniciou a edição
brasileira da revista internacional de teologia e cultura “Communio”,
idealizada e fundada por Joseph Ratzinger. Tais gestos falam muito de amizade
e de comunhão de idéias. A propósito, Dom Eugenio certa vez declarara que lia
tudo que João Paulo II escrevia e era publicado. Sublinhava o que julgava relevante
e escolhia alguns trechos significativos para publicar no boletim da Revista do
Clero, de circulação interna.
A participação em várias congregações e comissões na Santa
Sé permitia que o cardeal fosse a Roma e ao Vaticano com frequência, de uma a
duas vezes ao ano. Tais encontros de trabalho permitiam que visitasse o Papa,
intensificando, através de colóquios, a confiança recíproca.
Preparou e liderou cuidadosamente a primeira visita de João
Paulo II ao Brasil, na arquidiocese: o quarto de repouso; os espaços de
recepção popular; as pessoas com as quais se encontraria em grupo; a
facilidade de locomoção; os detalhes da segurança; em suma, a recepção. Foram
dias memoráveis e apoteóticos. Após a visita, repleto de contentamento,
repetira mais de uma vez: “Agora, Senhor, deixai teu servo ir em paz” (Lc
2,29).
O Encontro Mundial com as Famílias, no Rio de Janeiro,
proporcionou-lhe novas alegrias e preocupações para receber e recepcionar o
Papa, preocupado com o estado de sua saúde. A situação era diferente. Não mais
um Papa jovem e atlético, mas alquebrado pela idade e a enfermidade,
segurando a bengala. O cardeal acolheu o amigo com muito afeto e carinho.
Percebia-se.
Com o Papa, o cardeal acolheu inúmeras famílias, vindas do
exterior e do interior do país para o encontro. Ao seu pedido, muitos abriram
as portas para a hospedagem. Houve lugar para todos. A festa no Maracanã, a
missa na Catedral e, especialmente, a expressiva multidão no Aterro, foram
alento para o Papa e regozijo para o cardeal. Espontaneamente a orquestra tocou
e a multidão cantou Cidade Maravilhosa, com a Baía da Guanabara no cenário.
Para Dom Eugenio mais um preito de amizade dedicada ao Santo Padre.
O falecimento de João Paulo II causou tristeza em Dom Eugenio. Ao
saber da notícia, logo se recolheu em oração, na capela do Sumaré, para rezar
pela alma do amigo. Viajou para as exéquias. Presidiu uma das missas de sufrágio,
na Praça de São Pedro. Participou do sepultamento, na qualidade de cardeal mais
antigo, desde 28 de abril de 1969. Era o adeus ao amigo. Já se reencontraram em
Deus.
DOM EDSON DE CASTRO HOMEM, BISPO AUXILIAR DA ARQUIDIOCESE DO RIO
FOTO: ARQUIVO TF