Voltou para a casa do Pai o nosso querido Cardeal Dom
Eugenio de Araujo Sales, homem que lutou e conseguiu construir um mundo mais
justo e humano e que amou a Igreja até f im de seus dias. Como bem indica a
etimologia grega: eugenios, “bem nascido, nobre”. Sim, em toda a sua vida foi
nobre entre os pequenos; sempre tratou a todos com leveza espiritual.
Quando tratou de acolher seminaristas de outras dioceses no
Rio de Janeiro, ele o fez com muita alegria, visto a sua experiência em sua
formação. A abertura para o outro, não vendo no outro algum forasteiro, mas
membro do povo de Deus, irmão nosso, faz muita diferença em nossa missão de
Igreja e em nossa caminhada pastoral.
Seus trabalhos pastorais e sociais no Nordeste foram
inúmeros. O filho do Rio Grande do Norte, Primaz do Brasil, Cardeal da Santa
Igreja, depois se tornou o arcebispo da Capital da República do Brasil.
Trazia como lema de ordenação: “Impendam et Superimpendar”.
Alusão à frase de São Paulo: “De mui boa vontade darei o que é meu, e me darei
a mim mesmo pelas vossas almas” (2Cor 12,15).
Muitos se lembram de quando fora arcebispo de Salvador, na
Bahia, e unido a uma equipe deu início às CEBs (Comunidades Eclesiais de
Base), bem como deu continuidade à Campanha da Fraternidade (que havia sido
iniciada por ele em Natal).
O que não dizer então sobre o diaconato permanente: Dom
Eugenio foi um dos primeiros bispos do Brasil a implantar este ministério.
Ordenou mais de 200 sacerdotes e foi o sagrante principal de mais de 20
bispos. Ao mesmo tempo que dedicava sua vida à arquidiocese, ainda acumulava o
acompanhamento em 11 congregações na Santa Sé, entre conselhos e comissões. Um
grande representante brasileiro junto ao governo universal da Igreja.
Foi um grande defensor da dout r ina catól ica demonstrando
que, seguindo a verdadeira doutrina, podia ser muito bem um grande
evangelizador, missionário, catequista e também um combatente pelo social e
pela dignidade humana. Este seu trabalho, que não foi reconhecido na época
devido à tendência que havia na comunicação, foi redescoberto mais tarde
através de tantos testemunhos que pouco a pouco foram aparecendo. Chegou a ser
chamado de “bispo vermelho” por ter ajudado a criar sindicatos rurais no Rio
Grande do Norte e também quando, durante o totalitarismo militar, entre 1976 e
1982, ele mesmo escondeu, guardou e cuidou de cerca de 5 mil pessoas, naquele
período da revolução, na maioria argentinos.
Ele mesmo assumiu discretamente a causa dos refugiados
políticos latino-americanos. Articulou uma ação com a Cáritas e o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e, de início, abrigou estes
refugiados no Palácio Episcopal São Joaquim. Mais tarde, usou apartamentos
para escondê-los. Enquanto lutava pelo asilo político, era ele quem corria
atrás da sustentação e manutenção de todos.
Para conseguir o asilo político, enfrentou muitas
dificuldades e embates com as autoridades da época, nem sempre visíveis ou
noticiados pelos meios de comunicação. Mas sua autoridade dobrava a
encruzilhada da história naquele momento. Sua leveza fazia com que portas se
abrissem, mesmo que as dobradiças se mostrassem “enferrujadas”. O marechal
Castelo Branco chegou a defini-lo como o bispo mais perigoso do Brasil.
Ele não temia os poderes da época, a ponto de um dia
telefonar para o general Sylvio Frota e lhe dizer: “Frota, se você receber
comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que
eu estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável.
Ponto final, ponto f inal ”. Sem contar quanta repercussão e perseguição
sofreu quando se negou a celebrar missa pelo aniversário do A-I 5.
Muito se destacou na vida pastoral da Igreja Católica,
incluindo a criação de centros de atendimento a portadores do HIV. Teve forte
empenho na formação de líderes que atuaram na pastorais carcerária, das favelas
e do menor.
Somente no dia 25 de julho de 2001, sua renúncia foi
finalmente aceita e entregou o báculo (símbolo do pastoreio do Povo de Deus) a
Dom Eusébio Oscar Sheid, em 22 de setembro de 2001.
Dom Eugenio marcou a história da Igreja no Brasil com seus
gestos e ações, mas principalmente com sua exposição sempre corajosa,
catequética e profética, escrevendo para muitos jornais de grande circulação.
Com sua inteligência sabia criar e formar consciências. Teve sempre boa e prof
issional aproximação com os meios de comunicação social, apresentando suas ref
lexões tanto nas TVs como nas rádios de inspiração católica. Um dia, em uma
entrevista a um jornal, assim se manifestou: “Eu já estou cansado, às vezes
minha memória falha. Mas faço questão de receber os jornalistas. Nada no mundo
funciona sem a comunicação. Ela é fundamental para difusão do Evangelho. Eu
levei isso muito a sério na minha vida ministerial, instalei rádios, escrevi em
jornais, dei muitas entrevistas para TV. Quando eu não podia ir ao local, eu
chegava às pessoas pelos meios de comunicação”.
A notícia de sua morte, ocorrida às 23h30 do dia 9 de julho,
teve repercussão internacional – era o mais antigo cardeal do Colégio
Cardinalício. O Papa Bento XVI manifestou-se ao povo brasileiro enviando um comunicado
ao arcebispo do Rio de Janeiro.
Dom Eugenio tinha sempre estreita amizade e confiabilidade
com os papas que passaram por sua vida, desde Paulo VI até Bento XVI. Muito
bem lembrei, ao comunicar sua morte, primeiro por torpedos aos colaboradores
mais próximos por volta das 23h30 e depois por meio do Twitter às 0h40 da
madrugada do dia seguinte, quando afirmei que Dom Eugenio foi um homem marcante
na história da Igreja Católica no Brasil junto aos refugiados e sofredores.
Foi também desta forma que ele serviu a Jesus Cristo.
Dom Eugenio foi, é e sempre será a referência da Igreja no
Rio. Coube a ele, em uma carta fraternal, pedir a Bento XVI, que a sua amada
cidade do Rio de Janeiro fosse escolhida para a JMJ Rio2013. E a sua carta
ecoou em Madrid, quando o Papa Bento XVI anunciou e confirmou a cidade do Rio
como sede da JMJ 2013. Pequenos gestos como estes demonstram que Dom Eugenio é
o nosso patriarca: aquele que nos conduziu sempre para os caminhos de Deus,
sempre fiel à Igreja e ao Papa.
Antes de surgir a vocação ao sacerdócio, Dom Eugenio pensava
em ser engenheiro agrônomo. Coincidência ou não, acabou sendo um grande
engenheiro nas obras do Reino de Deus. A pomba que acompanhou o seu féretro
recorda de um lado a sua preocupação com a natureza e vida rural, onde
inclusive ele residiu, no Sumaré, em plena Floresta da Tijuca, e depois a sua procura
pela verdadeira paz. Ele edificou consciências e pessoas que continuaram o
exercício de apresentar os sinais do Reino de Deus.
Homem destacado, amado e nem sempre compreendido, mas
preferido por Deus, porque Deus o preferiu. Grande empreendedor na Arquidiocese
do Rio de Janeiro e hoje um intercessor de todos católicos do Brasil no Céu.
Como ele mesmo disse em seu testamento: “No Céu, onde espero ser acolhido por
meu Pai, o Senhor Jesus e Maria, procurarei retribuir tudo o que recebi”.
DOM ORANI JOÃO TEMPESTA, O.CIST., ARCEBISPO DA ARQUIDIOCESE DO RIO
FOTO: CARLOS MOIOLI