segunda-feira, 23 de julho de 2012

Crônica de amigo



Repetimos em geral afirmações sobre a importância de se manter a amizade. Dizemos e musicamos: “Um amigo bom e fiel vale mais que um tesouro”. A frase se origina do ensinamento sapiencial sobre o cultivo e a fidelidade nos relacionamentos amigáveis, transmitidos através do gênero literário dos provérbios da cultura hebraica. Dizem os textos da Sagrada Escritura: “Não abandones teu amigo, nem o amigo do teu pai” (Pr 27, 10); “Não te esqueças do amigo em teu coração, não percas a sua lembrança em meio às riquezas” (Eclo 37, 6); “Um amigo fiel é um poderoso refúgio, quem o descobriu, encontrou um tesouro. Um amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Um amigo fiel é um bálsamo vital e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele que teme ao Senhor faz amigos verdadeiros, pois tal como ele é, assim é seu amigo” (Eclo 6, 14-17).


Tais referências bíblicas alimentaram em Dom Euge­nio a fidelidade aos amigos, que foram muitos em sua vida de homem público. Compa­nheiros e companheiras de amizade particular, e não só colaboradores de trabalho, nem sempre compartilhavam da mesma convicção religiosa ou não pensavam e agiam do mesmo modo de ser, entre si, mesmo quando professavam a fé comum. É caracterís­tico do relacionamento cultivado pelo cardeal: respeito ao pluralismo de ideias; acolhida da diversidade; liberdade de divergir educada­mente.
Sabe-se que o cardeal cultivava a obediência incondi­cional e a devoção sincera ao Papa, en­quanto sucessor do apóstolo Pedro e vigário de Cristo na terra.
Portanto, por razões de fé cató­lica. Como bispo, foi obediente aos papas: Pio XII, que o escolheu para o episcopado; João XXIII, que o convocou ao Concílio Ecu­mênico Vaticano II; Paulo VI, que o nomeou cardeal presbítero da Igreja Romana do título de São Gregório VII e o transferiu de São Salvador da Bahia para São Sebastião do Rio de Janeiro; João Paulo I e João Paulo II, eleitos nos conclaves de que participara; Bento XVI, já na fase recolhida de arcebispo emé­rito.
Além de co­laborador dos papas citados, Dom Eugenio se distinguiu pela amizade compartilha­da com o Ser­vo de Deus, João Paulo II. Comun­gava com a mesma fé do amigo e com suas in­tenções mais profundas. Partilhavam confidências.
Conheceram-se no período conciliar e conviveram em dois conclaves, o segundo quando o Cardeal Wojtyla de Cracóvia fora eleito Papa. Então, para conhecê-lo melhor, planejou a visita à Polônia, aos lugares ligados a sua biografia. A deli­cadeza do gesto aproximou os dois grandes líderes da Igreja. Reforçou a confiança recíproca.
O cardeal realizou congres­sos sobre a antropologia e a práxis no pensamento de João Paulo II. Deu o nome de Edifí­cio João Paulo II à construção do prédio que reúne a Mitra e a Cúria, o Tribunal Eclesiástico e todas as atividades pastorais da arquidiocese, para facilitar a aproximação dos organismos. Criou a Faculdade Eclesiástica João Paulo II. Iniciou a edição brasileira da revista interna­cional de teologia e cultura “Communio”, idealizada e fun­dada por Joseph Ratzinger. Tais gestos falam muito de amizade e de comunhão de idéias. A pro­pósito, Dom Eugenio certa vez declarara que lia tudo que João Paulo II escrevia e era publicado. Sublinhava o que julgava rele­vante e escolhia alguns trechos significativos para publicar no boletim da Revista do Clero, de circulação interna.
A participação em várias con­gregações e comissões na Santa Sé permitia que o cardeal fosse a Roma e ao Vaticano com fre­quência, de uma a duas vezes ao ano. Tais encontros de tra­balho permitiam que visitasse o Papa, intensificando, através de colóquios, a confiança recíproca.
Preparou e liderou cuidadosamente a primeira visita de João Paulo II ao Brasil, na arqui­diocese: o quar­to de repouso; os espaços de recepção popu­lar; as pessoas com as quais se encontraria em grupo; a facilidade de locomoção; os detalhes da segurança; em suma, a recepção. Foram dias memoráveis e apoteóticos. Após a visita, repleto de con­tentamento, repetira mais de uma vez: “Agora, Senhor, deixai teu servo ir em paz” (Lc 2,29).
O Encontro Mundial com as Famílias, no Rio de Janei­ro, proporcionou-lhe novas alegrias e preocupações para receber e recepcionar o Papa, preocupado com o estado de sua saúde. A situação era diferente. Não mais um Papa jovem e atlético, mas alque­brado pela idade e a enfermi­dade, segurando a bengala. O cardeal acolheu o amigo com muito afeto e carinho. Percebia-se.
Com o Papa, o cardeal acolheu inúmeras famílias, vindas do exterior e do interior do país para o encontro. Ao seu pedido, muitos abriram as portas para a hospedagem. Houve lugar para todos. A festa no Maracanã, a missa na Catedral e, especialmen­te, a expressiva multidão no Aterro, foram alento para o Papa e regozijo para o cardeal. Espontaneamente a orquestra tocou e a multidão cantou Ci­dade Maravilhosa, com a Baía da Guanabara no cenário. Para Dom Eugenio mais um preito de amizade dedicada ao Santo Padre.
O falecimento de João Paulo II causou tristeza em Dom Eugenio. Ao saber da notícia, logo se recolheu em oração, na capela do Sumaré, para rezar pela alma do amigo. Viajou para as exéquias. Pre­sidiu uma das missas de su­frágio, na Praça de São Pedro. Participou do sepultamento, na qualidade de cardeal mais antigo, desde 28 de abril de 1969. Era o adeus ao amigo. Já se reencontraram em Deus.

DOM EDSON DE CASTRO HOMEM, BISPO AUXILIAR DA ARQUIDIOCESE DO RIO
FOTO: ARQUIVO TF