segunda-feira, 23 de julho de 2012

Cardeal Sales: um homem de Deus



Voltou para a casa do Pai o nosso querido Cardeal Dom Eugenio de Araujo Sa­les, homem que lutou e con­seguiu construir um mundo mais justo e humano e que amou a Igreja até f im de seus dias. Como bem indica a etimologia grega: eugenios, “bem nascido, nobre”. Sim, em toda a sua vida foi nobre entre os pequenos; sempre tratou a todos com leveza espiritual.
Quando tratou de aco­lher seminaristas de outras dioceses no Rio de Janeiro, ele o fez com muita alegria, visto a sua experiência em sua formação. A abertura para o outro, não vendo no outro algum forasteiro, mas membro do povo de Deus, irmão nosso, faz muita di­ferença em nossa missão de Igreja e em nossa caminhada pastoral.
Seus trabalhos pastorais e sociais no Nordeste foram inúmeros. O filho do Rio Grande do Norte, Primaz do Brasil, Cardeal da Santa Igreja, depois se tornou o arcebispo da Capital da Re­pública do Brasil.
Trazia como lema de or­denação: “Impendam et Su­perimpendar”. Alusão à frase de São Paulo: “De mui boa vontade darei o que é meu, e me darei a mim mesmo pelas vossas almas” (2Cor 12,15).
Muitos se lembram de quando fora arcebispo de Salvador, na Bahia, e unido a uma equipe deu início às CEBs (Comunidades Ecle­siais de Base), bem como deu continuidade à Campanha da Fraternidade (que havia sido iniciada por ele em Natal).
O que não dizer então sobre o diaconato permanen­te: Dom Eugenio foi um dos primeiros bispos do Brasil a implantar este ministério. Ordenou mais de 200 sacer­dotes e foi o sagrante princi­pal de mais de 20 bispos. Ao mesmo tempo que dedicava sua vida à arquidiocese, ain­da acumulava o acompanha­mento em 11 congregações na Santa Sé, entre conselhos e comissões. Um grande repre­sentante brasileiro junto ao governo universal da Igreja.
Foi um grande defensor da dout r ina catól ica de­monstrando que, seguindo a verdadeira doutrina, podia ser muito bem um grande evangelizador, missionário, catequista e também um combatente pelo social e pela dignidade humana. Este seu trabalho, que não foi reco­nhecido na época devido à tendência que havia na co­municação, foi redescoberto mais tarde através de tantos testemunhos que pouco a pouco foram aparecendo. Chegou a ser chamado de “bispo vermelho” por ter aju­dado a criar sindicatos rurais no Rio Grande do Norte e também quando, durante o totalitarismo militar, entre 1976 e 1982, ele mesmo es­condeu, guardou e cuidou de cerca de 5 mil pessoas, naquele período da revolu­ção, na maioria argentinos.
Ele mesmo assumiu dis­cretamente a causa dos re­fugiados políticos latino­-americanos. Articulou uma ação com a Cáritas e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e, de início, abrigou estes refu­giados no Palácio Episcopal São Joaquim. Mais tarde, usou apartamentos para escondê­-los. Enquanto lutava pelo asilo político, era ele quem corria atrás da sustentação e manutenção de todos.
Para conseguir o asilo político, enfrentou muitas dificuldades e embates com as autoridades da época, nem sempre visíveis ou noticiados pelos meios de comunicação. Mas sua autoridade dobrava a encruzilhada da história naquele momento. Sua leveza fazia com que portas se abris­sem, mesmo que as dobradiças se mostrassem “enferrujadas”. O marechal Castelo Branco chegou a defini-lo como o bispo mais perigoso do Brasil.
Ele não temia os poderes da época, a ponto de um dia telefonar para o general Syl­vio Frota e lhe dizer: “Frota, se você receber comuni­cação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que eu es­tou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto f inal ”. Sem contar quanta repercussão e per­seguição sofreu quando se negou a celebrar missa pelo aniversário do A-I 5.
Muito se destacou na vida pastoral da Igreja Ca­tólica, incluindo a criação de centros de atendimento a portadores do HIV. Teve forte empenho na formação de líderes que atuaram na pastorais carcerária, das favelas e do menor.
Somente no dia 25 de ju­lho de 2001, sua renúncia foi finalmente aceita e entregou o báculo (símbolo do pasto­reio do Povo de Deus) a Dom Eusébio Oscar Sheid, em 22 de setembro de 2001.
Dom Eugenio marcou a história da Igreja no Brasil com seus gestos e ações, mas principalmente com sua exposição sempre corajosa, catequética e profética, es­crevendo para muitos jornais de grande circulação. Com sua inteligência sabia criar e formar consciências. Teve sempre boa e prof issional aproximação com os meios de comunicação social, apre­sentando suas ref lexões tan­to nas TVs como nas rádios de inspiração católica. Um dia, em uma entrevista a um jornal, assim se manifestou: “Eu já estou cansado, às ve­zes minha memória falha. Mas faço questão de receber os jornalistas. Nada no mun­do funciona sem a comu­nicação. Ela é fundamental para difusão do Evangelho. Eu levei isso muito a sério na minha vida ministerial, instalei rádios, escrevi em jornais, dei muitas entrevis­tas para TV. Quando eu não podia ir ao local, eu chegava às pessoas pelos meios de comunicação”.
A notícia de sua morte, ocorrida às 23h30 do dia 9 de julho, teve repercussão internacional – era o mais antigo cardeal do Colégio Cardinalício. O Papa Bento XVI manifestou-se ao povo brasileiro enviando um co­municado ao arcebispo do Rio de Janeiro.
Dom Eugenio tinha sem­pre estreita amizade e con­fiabilidade com os papas que passaram por sua vida, desde Paulo VI até Bento XVI. Mui­to bem lembrei, ao comunicar sua morte, primeiro por tor­pedos aos colaboradores mais próximos por volta das 23h30 e depois por meio do Twitter às 0h40 da madrugada do dia seguinte, quando afirmei que Dom Eugenio foi um homem marcante na história da Igre­ja Católica no Brasil junto aos refugiados e sofredores. Foi também desta forma que ele serviu a Jesus Cristo.
Dom Eugenio foi, é e sem­pre será a referência da Igreja no Rio. Coube a ele, em uma carta fraternal, pedir a Bento XVI, que a sua amada cidade do Rio de Janeiro fosse esco­lhida para a JMJ Rio2013. E a sua carta ecoou em Madrid, quando o Papa Bento XVI anunciou e confirmou a cida­de do Rio como sede da JMJ 2013. Pequenos gestos como estes demonstram que Dom Eugenio é o nosso patriarca: aquele que nos conduziu sem­pre para os caminhos de Deus, sempre fiel à Igreja e ao Papa.
Antes de surgir a vocação ao sacerdócio, Dom Eugenio pensava em ser engenheiro agrônomo. Coincidência ou não, acabou sendo um gran­de engenheiro nas obras do Reino de Deus. A pomba que acompanhou o seu féretro recorda de um lado a sua pre­ocupação com a natureza e vida rural, onde inclusive ele residiu, no Sumaré, em plena Floresta da Tijuca, e depois a sua procura pela verdadeira paz. Ele edificou consciências e pessoas que continuaram o exercício de apresentar os sinais do Reino de Deus.
Homem destacado, amado e nem sempre compreendido, mas preferido por Deus, por­que Deus o preferiu. Grande empreendedor na Arquidioce­se do Rio de Janeiro e hoje um intercessor de todos católicos do Brasil no Céu. Como ele mesmo disse em seu testa­mento: “No Céu, onde espero ser acolhido por meu Pai, o Se­nhor Jesus e Maria, procurarei retribuir tudo o que recebi”.

DOM ORANI JOÃO TEMPESTA, O.CIST., ARCEBISPO DA ARQUIDIOCESE DO RIO
FOTO: CARLOS MOIOLI