sexta-feira, 29 de junho de 2012

Santa Sé: o desenvolvimento sustentável deve ser centrado na pessoa humana



Presente no Rio de Janeiro desde o dia 11 de junho, o observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, o cônsul Dom Francis Chullikatt, participou de todo o processo de elaboração do documento final da Conferência Internacional Rio+20, encerrada no dia 22 de junho.
Em entrevista ao jornal “Testemunho de Fé”, Dom Francis destacou que a posição da Igreja, presente nas Nações Unidas como Santa Sé, estado soberano do Vaticano, não muda com a história, embora busque responder aos desafios próprios de cada época: a Igreja defende a vida e a dignidade do ser humano e, no atual contexto, a centralidade da pessoa humana no desenvolvimento sustentável. Confira a entrevista:

Testemunho de Fé – Qual a participação da Igreja no docu­mento final?
Dom Francis Chullikatt – A Igreja Católica participa dos assuntos internacionais como Santa Sé, expressão que se refere, em termos teológicos, ao seu pastor universal, o Papa, e em termos jurídicos à personalidade legal internacional da Igreja. Na Organização das Nações Unidas, a Santa Sé tem o status de Estado Observador (embora seja Estado Membro, sem restrições, em diversos outros organismos). Sob a orientação da Representação Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas (e na Organização dos Estados Americanos), eu, como núncio apostólico, juntamente com os especialistas e consultores creditados para a Missão de Observação Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, contribuímos para a minuta e a negociação do documento resultante da Rio+20, desde o início do processo e em cada estágio, inclusive durante as três comissões preparatórias e durante as negociações informais na sede das Nações Unidas, em Nova York. Isto porque, na Rio+20, a Delegação da Santa Sé participou como estado-membro pleno da conferência. Sua comitiva foi encabeçada pelo Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo. Também estiveram presentes à conferência inúmeras organizações católicas não governamentais, ativas na sociedade civil, que apoiam a Santa Sé e a auxiliam na disseminação da Doutrina Social Católica.

TF – Que partes do documento são importantes para o futuro da humanidade?
Dom Francis – Sendo três os pi­lares do desenvolvimento susten­tável – social, ambiental e econô­mico – todos têm importância e são, além disso, interdependentes. Seria arriscado tender para um de­les na mensagem da Rio+20, como separar uma parte da plenitude do todo. Mesmo assim, devemos ser cautelosos ao apresentar as rea­lizações no Rio desta forma, que pressupõe um pilar submetido a outro. Uma compreensão equivo­cada do desenvolvimento susten­tável – em especial a que subordi­na o esteio social e econômico ao pilar do meio ambiente – provo­cou tensões consideráveis durante nossas negociações. Dito isto, difi­cilmente pode-se falar de um futu­ro para a humanidade sem ressal­tar que o ser humano é a finalida­de mais adequada para o desenvol­vimento sustentável e o objeto dos direitos humanos a ele associados, incluindo os direitos ambientais.

TF – O senhor vê algum ponto negativo ou preocupante?
Dom Francis – É lamentável que, na busca pelo desenvolvimen­to sustentável, na Declaração de Princípios da Conferência do Rio, a visão do Primeiro Princípio, ou seja, de que o ser humano é o cen­tro do desenvolvimento susten­tável, às vezes se tenha perdido. Quando, por meio da lógica dú­bia do controle populacional, ten­taram colocar a questão dos “di­reitos reprodutivos” no documen­to resultante da Rio+20, corremos o risco de comprometer a relação adequada dos meios para se che­gar a um fim. O crime do abor­to ataca a mais inocente das vi­das humanas, e quando isto ocor­re, supostamente a serviço do de­senvolvimento sustentável, o re­sultado é um documento decidi­damente falho, e não mais atende ao Primeiro Princípio da Rio+20, que, muito justamente, coloca a pessoa humana no centro do de­senvolvimento sustentável.

TF – Por que a questão dos “direitos reprodutivos” é pro­blemática?
Dom Francis – Porque qualquer política contra a vida vai contra o desenvolvimento. Não é eliminan­do pessoas que eliminamos o sub­desenvolvimento, e sim capacitan­do as pessoas para criarmos desen­volvimento. O ser humano é sem­pre uma finalidade em si mesmo, e o desenvolvimento sustentável é o meio pelo qual se atinge este fim. A saúde sexual e reprodutiva, de ma­neira semelhante, quando inter­pretada para incluir abortivos mas­carados de contraceptivos, falha da mesma forma, por atacar o direito à vida no santuário do útero. Des­ta forma, não pode por mais tem­po ser considerada, honestamente, como estando a serviço da saúde, de forma alguma; muito pelo con­trário, presta um desserviço à saú­de como um todo, incluindo a das mulheres.

TF – Qual ponto do documento a Igreja trabalhou ou influenciou diretamente?
Dom Francis – A Santa Sé pro­moveu, de forma consistente, uma abordagem do desenvolvi­mento sustentável centrado no humano, no documento resultan­te da Rio+20. Este priorizou a luta contra a pobreza e a fome, ao afir­mar claramente os direitos hu­manos ao desenvolvimento, à ali­mentação, ao atendimento bási­co na saúde, à educação, o acesso seguro à água potável, entre ou­tros. Para tanto, a Santa Sé preo­cupou-se com um foco mais am­plo no desenvolvimento humano integral, o que leva em conside­ração também as dimensões mo­rais e éticas do desenvolvimento sustentável. Manter a priorida­de do bem comum, e os princí­pios da solidariedade e da subsi­diariedade no documento, tam­bém motivou várias das emen­das propostas pela Santa Sé à lin­guagem do documento resultante da Rio+20. Salvaguardar o papel da família, por exemplo, vista na Declaração Universal dos Direi­tos Humanos como “grupo unitá­rio fundamental” da sociedade, é o ponto principal para se promo­ver um desenvolvimento huma­no integral que seja sustentável, e também atento aos valores da solidariedade e da subsidiarieda­de. Não há conflito entre os seres humanos e seu desenvolvimento. É necessário dar poderes aos po­vos, de maneira que possam mol­dar seu próprio futuro, de acordo com suas crenças religiosas, cul­turas e tradições.

TF – Por que foi tão difícil apro­var o documento final? Que diver­gências entre as visões dos dele­gados foram mais importantes?
Dom Francis – O avanço foi len­to em certas seções do documento resultante, das tensões resultan­tes da realidade econômica e fi­nanceira internacional. Desigual­dades entre as regiões, principal­mente considerando-se o caso da África, justificaram a pressão so­bre certas delegações para que de­monstrassem, de maneira concre­ta, uma solidariedade e um esforço realista para a erradicação da po­breza e da fome, como obstáculos primários ao desenvolvimento. Os países doadores ainda são reticen­tes em respeitar os compromissos assumidos para fornecer ajuda ao desenvolvimento das nações po­bres e menos desenvolvidas. Preci­sam adotar medidas para a trans­ferência de tecnologia adequada em âmbito local, para a promoção de um mercado global mais equi­tativo e inclusivo, para o respeito aos compromissos assumidos de fornecer ajuda ao desenvolvimen­to, e para encontrar novos meios de se colocar a dignidade huma­na, o bem comum e a proteção à criação no centro da vida econô­mica. Deveriam evitar a adoção de medidas protecionistas rígidas de­mais e que incentivem um clima de desconfiança entre parceiros, pois isto fere o princípio da solida­riedade. O princípio da destinação universal de bens exige que o pro­tecionismo excessivo seja suplan­tado, mesmo na esfera ambiental.

TF – Os países mais pobres, na sua opinião, são contempla­dos em conferências como esta?
Dom Francis – Os países po­bres e em desenvolvimento che­gam com grandes expectativas a conferências internacionais como a Rio+20. Procuram ajuda, assis­tência e especialização, no âmbi­to social, financeiro e humanitá­rio, da parte de seus irmãos das nações desenvolvidas. No entan­to, parece que tudo o que con­seguem obter dessas conferên­cias muito divulgadas é, geral­mente, apenas promessas e com­promissos. É suficiente lembrar aqui como os governos ainda de­moram para respeitar os com­promissos assumidos em 2000, quando adotaram os “Objetivos de Desenvolvimento do Milê­nio”. Após aquela conferência, os estados-nações parecerem ter­-se esquecido de que concorda­ram com aqueles objetivos para se criar um mundo melhor. Os governos precisam cumprir suas promessas; de outra forma, um futuro próspero e melhor conti­nuará sendo uma miragem para os povos mais necessitados e po­bres em todo o mundo.

ANDRÉIA GRIPP
TRADUÇÃO: CRISTINA VAZ DE CARVALHO
FOTO: GUSTAVO DE OLIVEIRA