TF –
Como o STF não tem poder legislador, o julgamento da ADPF nº 54 pode ser
considerado nulo por ser inconstitucional?
Ives Gandra – Na
minha interpretação da lei maior, o Congresso Nacional pode anular a decisão do
STF com base no artigo 49, inciso XI, assim redigido: "É da competência
exclusiva do Congresso Nacional: XI – zelar pela preservação de sua competência
legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes". O Supremo
Tribunal Federal não tem poder de legislar, nem mesmo nas omissões
inconstitucionais do Legislativo, isto é, quando a Constituição exige a
produção de uma lei imediata e o Parlamento não a produz. E, à evidência, se há
proibição do STF legislar em determinadas matérias, em que a desídia do Congresso
é inequívoca, com muito mais razão não pode a Suprema Corte avocar-se no
direito de legislar no lugar do Congresso naquelas matérias de legislação
ordinária. Tal aspecto foi bem salientado pelo ministro Ricardo Lewandowsky em
seu voto.
O dispositivo que impede o Pretório Excelso de legislar é o
parágrafo 2º do artigo 103 da Lei Suprema, assim redi g ido : “Decl a rada a
inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma
constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das
providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para
fazê-lo em trinta dias". Para o Executivo há prazo para produzir a norma.
Para o Legislativo, nem prazo, nem sanção, se não a produzir.
TF –
Qual a sua opinião sobre esse caso não ter sido julgado no Congresso? E pela
maneira antidemocrática como foi feito, sem levar em conta as manifestações da
sociedade e também sem permitir que vozes contrárias fossem ouvidas durante a
sessão?
Ives – Só
me resta lamentar, até porque as entidades favoráveis à vida foram proibidas
de sustentar oralmente a defesa da vida, pelo ministro Marco Aurélio que não as
admitiu como amicus curiae (amigos da Corte). Desta forma, em plenário
só houve a defesa dos advogados favoráveis ao aborto (procurador-geral e o da
instituição promotora da ADPF).
Matéria
desta complexidade, em que a maioria da sociedade, segundo o ministro Lewandowsky,
é contra, à evidência, só poderia ser decidida pelo Congresso e, a meu ver,
promovendo um plebiscito para conhecer o que quer a nação.
Para mim,
todavia, em face da inviolabilidade do direito à vida desde a concepção (art.
5º, "caput"), entendo que, por ser cláusula pétrea, a questão não
poderia ser sequer tratada, não tendo sido recepcionado o Código Penal de 1940
nas hipóteses do aborto sentimental ou terapêutico.
TF –
Qual é o critério para a escolha dos ministros do STF? Quem responde por alguma
decisão indevida? De que forma a sociedade pode agir para exigir algum tipo de
mudança nos critérios antidemocráticos adotados no julgamento?
Ives – O sistema atual é ruim, pois
depende exclusivamente da vontade política ou amizade do presidente com o
candidato escolhido. Uma vez escolhido, entretanto, só por prevaricação poderá
o ministro ser afastado pelo Senado. Jamais por decidir de acordo com suas
convicções, mesmo quando frontalmente contrariar a lei. O que a sociedade pode
fazer é pressionar os congressistas na forma de escolha dos ministros do STF.
TF –
Essa decisão pode abrir um precedente para a liberação do aborto em outras
situações não previstas em lei?
Ives – Claramente abre um precedente para
o aborto de fetos mal formados. A reação, todavia, foi de tal espécie que creio
que dificilmente o STF entrará em outra aventura semelhante. Deixará os demais
casos para o Congresso decidir.
TF –
Qual a sua opinião sobre o aborto de crianças anencéfalas?
Ives – O artigo 2º do Código Civil declara que todos os direitos são
assegurados ao nascituro, desde a concepção. O parágrafo 5º da Constituição diz
que ele é inviolável. E o parágrafo 4º do Pacto de São José, do qual o Brasil é
signatário, que os direitos do nascituro devem ser assegurados desde a
concepção. Não há qualquer exceção nos três textos. Por esta razão, nada
obstante a decisão de oito ínclitos ministros do STF, continuo considerando
aborto de anencéfalos um homicídio uterino, agora legalizado.
CLÁUDIA BRITO
FOTO: ARQUIVO PESSOAL